Há 30 anos na PJ, como inspetor da unidade de combate à droga, Carlos Garcia é, aos 55 anos, além de um experiente operacional, um sénior do sindicalismo desta polícia. Nesta primeira entrevista no dia do seu regresso à liderança da Associação Sindical dos Funcionários da Carreira de Investigação Criminal (ASFIC), que já tinha presidido entre 2010 e 2016, Carlos Garcia desvenda a realidade dramática que os inspetores vivem no dia-a-dia. Uma realidade distante dos discursos oficiais, em que há processos de corrupção com investigações abertas há quatro anos, em que há inspetores com “cem e 200 processos no armário” porque não tiveram ainda tempo para os tratar. “Neste momento, temo que, em algumas situações, devido à falta de meios, se possa estar a investigar mal”, alerta. Uma realidade em que “o amor à camisola”, que foi destacado pelo Presidente da República na visita que fez à sede da PJ, tem um preço muito alto nas vidas dos investigadores.
Na sua recente visita à sede da Polícia Judiciária (PJ), o Presidente da República disse ter ficado impressionado com o “espírito” que sentiu, com o “amor à camisola” e a “paixão” pelo trabalho. É mesmo assim? Ou as aparências iludem?
É uma realidade, sim. Infelizmente, uma realidade que se está a perder. A PJ é uma casa de gente “velha” (a média de idades atualmente está na casa dos 50 anos) e são principalmente os antigos que ainda têm essa paixão e sentimento de dever à causa, de pôr a polícia à frente de tudo, da família, com todos os prejuízos que isso possa causar na sua vida. Eu acompanhei a visita e o Presidente esteve em unidades operacionais, com a de contraterrorismo ou droga, onde há gente mais antiga e esse amor à camisola. A nova geração já é diferente, apesar de vestirem a camisola sentem que a casa não lhes dá o que merecem. Não digo que seja melhor ou pior.
Mas o que é exatamente o espírito de sacrifício?
É trabalharmos muito mais horas para além do nosso horário, sem sermos pagos condignamente por isso. É sermos chamados a qualquer momento e dizermos que sim. Sábados, domingos, de madrugada. Todos os que temos filhos temos muitas histórias para contar de festas a que prometemos ir e não fomos, de idas ao cinema que falhámos com a família. As pessoas ficam de facto esgotadas. As gerações mais novas têm uma consciência muito forte dos diretos que lhes assistem e, a certa altura, dizem que para este peditório já não dão mais.
E acham mau que as novas gerações tenham essa atitude?
Claramente que achamos que é bom saberem que têm direito a ter direitos. Para além de polícias, somos cidadãos, que era algo que não era assumido antigamente. Ou então temos de ser compensados por isso.
Casos investigados com quatro anos de atraso
O Presidente também disse que quer, tal como todos os portugueses, uma PJ forte, eficaz, competente e prestigiada. O que falta?
Para o cidadão comum, a PJ continua a granjear prestígio. Sentimos isso, por exemplo, nos nossos piquetes, quando vai lá alguém denunciar um crime. Confiam em nós. Competente, sem dúvida. Temos quadros muitíssimo qualificados, de grande competência, essenciais em investigações complexas que temos conseguido concluir com sucesso. Quanto à eficácia, já coloco algumas reticências. Isto porque a falta de meios tem sido gritante. A eficácia de uma polícia mede-se pela celeridade com que resolve os crimes e se levam os autores à justiça. Dou como exemplo a corrupção, cujo combate e prevenção tanto têm sido declarados prioridade pelos poderes políticos. A falta de meios humanos na Unidade Nacional de Combate à Corrupção (UNCC) é tanta que as pessoas estão a investigar processos de 2015, para que não prescrevam, e continuam a receber processos de 2019. Estão a investigar casos com quatro anos de atraso. Digamos que, em determinadas áreas, andamos um bocadinho a “brincar” às investigações e aí a eficácia fica condicionada. O volume de trabalho é de tal maneira que, por muito voluntariosos que sejamos, é impossível dar resposta a todas as situações.
Quer dar-me alguns exemplos concretos dessa falta de meios?
Claro. Na Unidade Nacional de Combate ao Tráfico de Estupefacientes (UNCTE) éramos cerca de cem inspetores em 2002-2003. Nos últimos dez anos perdemos 60 – mais de metade. A diretoria do norte, que teve mais de 50 inspetores na droga, hoje tem nove. A diretoria do centro tem sete, Aveiro tem três inspetores para investigar droga, o mesmo em Braga, Guarda tem dois, Portimão tem seis, Funchal e Ponta Delgada têm sete cada um, Setúbal, com o volume que tem desta criminalidade, tem duas pessoas, em Leiria há um inspetor – ora, como é que é possível investigar o tráfico desta forma? Basta ver os relatórios da Europol para verificar que o tráfico de droga está no topo das prioridades internacionais. Até porque está muitas vezes interligado com outra criminalidade grave, inclusivamente o financiamento do terrorismo. Houve um aumento substancial da produção da cocaína e, consequentemente, do tráfico, e o que vemos é a redução dos efetivos. Estamos a brincar! E isto é transversal a todas as áreas.
O quadro de pessoal – que agora vai deixar de haver porque nunca foi preenchido – previa 1945 inspetores. Neste momento, não chegamos aos mil. Uma barreira psicológica importante para a PJ. Contando com inspetores-chefes e coordenadores, temos cerca de 1300 pessoas na investigação criminal. Em dez anos perdemos mais de 300 inspetores. Com a agravante de que, tendo a PJ um pessoal envelhecido – neste momento, a idade média está nuns dramáticos 50 anos, a mais elevada de sempre e de todas as forças e serviços de segurança -, e sendo o número reduzido, tudo aponta para que esta sangria continue, pois vão atingindo o limite de idade para a reforma.
100 e 200 processos no armário
Mas neste ano entraram 159 novos inspetores e está a decorrer um concurso para mais cem. Já chega para inverter esse cenário?
Dos 159 inspetores estagiários, só em janeiro de 2020 entram em funções plenas 120 e os restantes só lá para o final desse ano. A última tomada de posse efetiva de estagiários tinha sido em 2013.
Que impacto operacional tem tido esses anos todos sem admissões?
É brutal. E vai levando ao desânimo das pessoas, que vão vendo os processos a ficarem acumulados. Depois obriga a que se tenha de fazer opções, como deixar de investigar algumas coisas para nos concentrarmos noutras. Na droga, por exemplo, às vezes temos de deixar ir um traficante, para nos centrarmos noutros. Na criminalidade económica é também flagrante o impacto destes anos sem admissões – e foi das unidades que mais reforços foi tendo, muitas vezes à conta do sacrifício de outras, como a UNCTE. Há pessoas a terem aos cem e aos 200 processos no armário. Ainda há dias, um colega contou-me que pegou num dos mais antigos pela primeira vez, de 2016, e deparou-se com a seguinte realidade: tem 390 e tal vítimas para ouvir.
Sendo certo que vêm a público inúmeras operações da PJ, que envolvem suspeitas de corrupção – ainda neste ano foram vários autarcas constituídos arguidos -, e depois demora anos a saberem-se os resultados…
É uma das questões que se colocam. Grandes operações da criminalidade económica e que depois, passado tanto tempo, os resultados em julgamento já não são os esperados. E voltamos à falta de meios. Muitas das investigações são tardias, quatro, cinco anos, e isto leva a que seja difícil fazer a prova. Ainda nesta semana, vimos o governo vir falar em novas leis para o combate à corrupção (delação premiada, por exemplo), mas esquecem-se de quem as aplica. Somos nós, na PJ, que temos a competência exclusiva da investigação da corrupção. Somos nós que temos de dar a volta às pessoas para testemunharem, aos arrependidos, aos delatores…
O próprio Ministério Público tem alertado para isso, para a falta de peritos, como os financeiros, que são fundamentais nesse tipo de criminalidade. Isto leva a um grande desgaste e frustração das pessoas. Já houve tempos em que a UNCC era das mais cobiçadas, ir para o colarinho branco era a elite, mas agora já ninguém quer ir para lá. As pessoas sabem que aquilo está cheio de papel, que podem levar com um processo de 40, 50 volumes, com prazos para cumprir e a frustração de não conseguirem dar resposta é enorme. Sentem que não estão, de facto, a investigar. Chegámos a um ponto em que mais vale não investigar um suspeito e deixá-lo continuar a cometer determinado tipo de crimes do que constituí-lo arguido, dando-lhe a saber que está a ser investigado e depois a investigação ser mal feita e não ser condenado.
Como assim, deixá-lo continuar a cometer crimes?
Estamos a falar de crimes económicos… O que quero dizer é que pode ser mais eficaz, dada a falta de recursos, esperar pela oportunidade em que seja possível uma recolha de prova que leve a uma condenação do que estar a alertar os suspeitos e depois não ter tempo para investigar. No meu entender, é preferível não investigar alguém do que investigar mal. Neste momento, temo que, em algumas situações, devido à falta de meios, se possa estar a investigar mal.
São precisos 500 novos inspetores até 2022
De quantos mais inspetores precisa a PJ?
Era preciso que, nos próximos três anos, houvesse dois concursos por ano de cerca de cem pessoas cada um – um total de mais 500 inspetores até 2022. No mínimo, conseguirmos atingir os 1400/1500 inspetores. E é preciso não esquecer a importância que é a passagem dos testemunhos, das experiências, às novas gerações. Sem estas admissões regulares quebra-se essa ligação.
Que avaliação faz da forma como o governo tem lidado com a PJ? A ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, tem defendido bem a PJ?
Quanto a isso, não posso deixar de assinalar que acho curioso que o programa do governo para a próxima legislatura não tenha nenhuma referência à PJ. Zero. Mas depois vêm falar do combate à corrupção. Como? Não tem uma linha sobre a PJ. Estamos muito desiludidos. Primeiro com o programa do governo, mas também com as promessas que foram feitas e não foram cumpridas, na pseudonegociação do estatuto.
O Carlos Garcia volta à presidência da ASFIC depois de quatro anos fora do combate sindical. Como viu a evolução da PJ neste tempo?
Com preocupação. Reconheço o esforço feito pelo antecessor [Ricardo Valadas], mas nos últimos anos, com a anterior direção da polícia, houve alguma inação que levou a que as pessoas não se revissem nas lutas do sindicato e não quisessem participar. Depois houve uma fase nas negociações do estatuto em que as pessoas voltaram a acreditar, mas, quando ficou concluído, voltou o desânimo.
Desânimo? Mas este não é um bom estatuto? Não foi essa a perceção que passou para a opinião pública, quer da parte do governo, do Presidente que promulgou o diploma, da direção da PJ e da própria ASFIC. O seu antecessor sublinhou que “a independência da PJ está assegurada”. Não subscreve?
A questão é que, quanto à independência da PJ, estamos a falar não do estatuto, mas da lei orgânica. A independência da PJ não se afere nem é garantida pelo estatuto da carreira profissional. Mas quanto a isso, apesar de considerarmos que a lei orgânica está cheia de erros, continua a reconhecer as competências da PJ, enquanto corpo superior de polícia, a centralização e exclusividade na investigação de algumas matérias.
O governo ganhou 14 milhões com a nova tabela salarial
E quanto ao estatuto?
As pessoas esperavam muito mais. Ficou a anos-luz daquilo que era expectável ao fim de tantos anos. Desde logo porque não resolve um problema nuclear na PJ, que se arrasta há duas décadas: a organização do trabalho e o pagamento do trabalho fora do horário normal. Só se prevê que o pagamento do trabalho fora das horas normais (extraordinário) seja feito quando se está em prevenção ou piquete. Então e tudo o resto? O trabalho da secção, das investigações? Se não há pagamento as pessoas podem começar a recusar a trabalhar. É aí que entra o tal amor à camisola, mas isso acaba-se. Por outro lado, este estatuto deixa-nos 19 diplomas por regulamentar – e isto vai ser um desígnio crucial para a ASFIC nos próximos meses que, por esta via das regulamentações, vai tentar mitigar os efeitos negativos do estatuto. A revisão do suplemento de risco, piquetes, prevenções, regulamento de avaliação e regulamento disciplinar vão ter a nossa especial atenção. A lei exige que tudo fique regulamentado em 180 dias, que será em junho de 2020. Não vamos deixar passar o prazo.
E quanto a vencimentos? O novo estatuto prevê aumentos?
Quem olhou para a tabela salarial achou que era uma maravilha. Mas, vendo com atenção, a verdade é que aumentos são só em dois ou três escalões. Por exemplo, um novo inspetor, com a nova tabela, vai ganhar mais 209 euros. Quando mudar de escalão tem um acréscimo de 96 euros face ao que é agora. Mas depois, no escalão a seguir, já vai perder 58 euros, depois 213, depois 193, 168, 105 e, quando está a chegar ao fim da carreira, ganhas mais 28 e 31 euros que ganharia atualmente. Na carreira dos coordenadores superiores, perdem em todas as posições. Os coordenadores ganham 30 euros na primeira posição, a seguir mais um euro e a partir daí começam sempre a perder. Os inspetores chefes é a única carreira que ganha em mais posições. Fizemos as contas: grosso modo, o governo ganha com a nova tabela salarial da PJ cerca de 14 milhões de euros! Poupando nas progressões. Esquece-se de todos os milhões de euros que as investigações da PJ devolvem ao erário público ou impedem que saia.
Mas há mais: o novo estatuto exige uma exclusividade e disponibilidade e exigência total aos inspetores, muito mais apertada do que já é agora, e não dá qualquer contrapartida por isso. Essa vai ser uma das nossas linhas vermelhas, aliás. Se querem exclusividade total têm de compensar por isso.
Ou seja, é muito mau. Pode ser atrativo para quem pensa vir para a PJ, mas depois começa a pensar que daqui a cinco anos – que é quando a pessoa se pode ir embora sem ter de indemnizar a polícia – vai ganhar menos do que agora e que é motivo para saídas. Não é por acaso que, ao fim deste tempo, há tantas saídas de funcionários da investigação para o Centro de Estudos Judiciários, por exemplo. E sabemos que toda a componente prática que estes inspetores levam consigo torna-os magistrados muito bem preparados.
A PJ incomoda, mexe com os poderosos
Sente resistência da parte do poder político em reforçar e valorizar os meios humanos da PJ? Porque acha que isso acontece, tendo em conta que todos os discursos públicos defendem isso mesmo?
Vou dizer, porque nunca tive medo das palavras. A polícia incomoda. A PJ mexe com os poderosos. Sempre fomos independentes. Investigamos políticos sem medo, os poderes instalados. Mas isso tem o reverso da medalha.
Está a dizer que é intencional esta falta efetiva de apoio?
Penso que sim. Ao longo destes últimos anos, a PJ começou a caminhar para uma morte lenta. Não por via de uma alteração dos modelos de segurança, como chegou a ser pensado (colocar todas as polícias na tutela da Administração Interna), mas por via da asfixia da falta de meios. Devemos fazer aqui um elogio à atual direção, sob a liderança de Luís Neves, que está a tentar inverter este ciclo. Vamos ver se estas novas entradas são para continuar. Se continuarmos neste ritmo de admissões esperamos que a situação se reverta. Assusta-nos, sublinho, ver que, apesar das palavras públicas sobre a necessidade de reforçar a PJ, não haja uma linha no programa do governo.
Objetivos prioritários para o seu mandato na ASFIC?
Além do que falámos em relação à regulamentação do estatuto, emendando os erros, queremos tentar, novamente, unir as pessoas em torno de uma causa. Recuperar o espírito de corpo. Todo este processo foi fraturante para a ASFIC. Queremos que as pessoas voltem a acreditar no sindicato e na PJ, enquanto excelência da investigação criminal. Para o desejo do Presidente da República, e dos portugueses, se concretizar, de termos uma PJ forte, tem de ter os meios necessários e adequados para cumprir a sua missão enquanto corpo superior de polícia. Uma PJ em que os seus trabalhadores se sintam dignificados pelo reconhecimento político da função que desempenham e as muitas exigências que esta acarreta. Quer o governo quer a direção da PJ podem contar com a ASFIC para a resolução dos problemas.